domingo, 24 de março de 2024

Com licença poética

Frida Kahlo - Toto Espinoza

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado


Fotografia: teca via celular - Engenheiro Passos - Resende, RJ - Brasil


O poema em questão faz parte de “Bagagem”, primeiro livro da escritora, publicado em 1976. Nascida em Minas Gerais em 1935, Adélia desenvolveu uma escrita com tom coloquial, que mostra muito do cotidiano e da simplicidade da vida.

"Com licença poética" faz uma referência a outro poema famoso, "Poema de sete faces" de Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, aqui ela se apresenta como uma mulher resistente, que luta para ultrapassar as barreiras impostas pelo patriarcado. Dessa forma, inspira os leitores a seguir também suas jornadas com autonomia e liberdade.


Jesse Cook